O DITO-CUJO



Ansiavam que ele partisse para o inferno urgentemente. Mas ele insistia em continuar vivo. Acreditavam que faltava pouco, ninguém sobreviveria aquele acidente. O coração bom que lhe restava batendo tinha destino: Senhor Eduardo Nogueira, renomado juiz. Precisado de um transplante urgente a fim de prosseguir com o caso calamitoso, que apresentava-se sob seus cuidados.

Margarida, assassina. Havia estripado pai e mãe, o irmão de colo seguia desaparecido. Aparentemente não se sabia os motivos. Só podia ser obra do demônio, alguns alardeavam. O delegado seguia sem respostas.



Mas tudo encaminhava para a punição, e o honrado senhor Eduardo Nogueira deveria sentenciar a vil jovem. Pétalas brancas manchadas de sangue, um mal-me-quer-bem-me-quer mortífero, seu jogo.

Ele seguia cadavérico, mas sorridente na fria maca ao lado de outros dois moribundos. Era um desses também, mas era diferente. Era resistente, encantador e vivia no mundo sem compromissos, sem dinheiro, sem objetivos. Fazia sexo como desejasse, conservava uma juventude eterna, apesar de já contar mais de três décadas. Será que acordaria?

Acordou. Subitamente. Sozinho no quarto com os dois moribundos apodrecidos, sabia do desejo sobre seu órgão coronário. Sabe o porquê e tudo mais. Lá fora, na sala de espera, o estúpido assistente do senhor Nogueira sofria de ansiedade e desejava, com uma leve culpa, a morte do infame moribundo.

Um jovem médico adentrou ao quarto, estava ali para verificar quantos dos vermes sem nome já haviam morrido. Eles morriam, a maioria. Sujavam os lençóis de sangue e doenças e deixavam o hospital, amenizando os gastos desperdiçado com estúpidas vidas.

Ficou espantado, vendo o homem de pé, tranquilamente. Ia falar algo, mas foi invadido por um calor imediato. Olhando nos olhos do Dito-cujo, sentiu-se paralisado de prazer. Caminhou até ele. Com a mão em sua nuca, o Dito-cujo deu-lhe o beijo mais ardente de toda sua vida. Passaram por sua mente todos os mais variados beijos que havia dado, sentiu o beijo que havia dado em sua namorada na noite anterior. Sentiu o primeiro beijo desajeitado.

Sentiu-se sendo despido. Possuído pelo estranho performático, gozou, extasiado, ficou na maca sem saber o que era, o que sentira, o que fazer. O Dito-cujo, vestiu-lhe as roupas, com um doce beijo, despediu-se. Seguiu em direção à saída.

Na sala de espera, reconheceu de imediato o aflito e estúpido assistente do grande Nogueira. Dirigiu-se a ele. Com as mãos nos ombros. Disse: Meus sentimentos. Nogueira jazia estrebuchando na boa cama do sexto andar. Meus sentimentos. No fim, ele não ia conseguir possuir meu coração, disse sorrindo. E algo mais disse:

- Maragarida, meiga menina, não? Culpada? Não sei. Sei o que ela fez, eu estava lá. Mas não sei se podemos culpá-la. Podemos? Eu não, meu amigo. Eu não.

Seguiu, o terno do jovem médico sobre o ombro. O calor derretia-se pelas paredes dos prédios da cidade. Ele prosseguia. Teria ela conseguido escapar? Creia que sim. Suas instruções eram bem específicas, e ela era genial. Tinha muito a contar à menina. Assim como ele, ela também andaria entre-mundos de vida e morte. Só sabia bem viver, quem com a morte vivia um romance. Só quem apreciava os cheiro putrefato das coisas findando. Só quem não mais temia, pois agora era amado e amava a ceifadora.

Margarida era uma força radiante da natureza. Seus cabelos macios escorrendo por entre os dedos dele, em meio ao mar de sangue-família, foram uma das melhores sensações que sentira. Já tinha sentido de tudo. Mas a pele doce e amarga de Margarida era inesquecível. Quando sorveu seus líquidos em sua vagina rosada, sentiu mais um sopro de vida, oriunda do fim dos tempos.

O sexo não era mais um desejo primitivo como o era na juventude, o sexo era um alimento, quando sentia sua alma resfolgar, esfregava-se em outros corpos e, deixando-os transtornados de prazer, ganhava mais vida. Margarida, uma flor venenosamente vital e apaixonadamente mortal, dava-lhe mais vida. Rasgando-lhe a carne, deixando listras de sangue em seu dorso, faziam seu sangue fluir em direção ao paraíso e o inferno.

Gozava a morte disfarçada de vida.

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