EDITORIAL - TRIGÉSIMA SEGUNDA EDIÇÃO

A Hot, pela terceira vez, se apresenta com um conto escrito por mãos femininas. Camilla Jam nos apresenta uma melodiosa e erótica descrição de um momento sexual. Prosseguindo, de baixo pra cima, ficamos com a pulga atrás da orelha: Será que a maçã da branca de neve era a mesma que, mordida,  nos baniu do paraíso? e continuando, toda pulga atrás da orelha um dia morre emaranhada nas teias de cera?

Não se permita limites, o sexo é ultrajante e desleal com a realidade proferida pelas bocas sórdidas de ideias rasas. A hot é quente e o calor derrete a alma e as vontades. Derreta-se.

A CERA, A SALVAÇÃO



Gosto de limpar os ouvidos. Retirar a cera laranja amarronzada que nele se acumula. Esse ritual se torna um suplício metódico, um hábito masoquista. Pois para ter cera o suficiente para me deixar satisfeito, preciso ficar dias, semanas, sem limpar meus ouvidos. Até que chega o grandioso momento, com os cotonetes mais macios, adentro meus orifícios e retiro o mal que lá se decompõe. Na verdade a cera não é um mal. Me protege do mal exterior, mas a medida que com ele se envolve já não se sabe mais o que é. Muda de natureza, então devo removê-la.
Ela vinha todo dia, não a cera, a moça que vos apresentarei. Não era a mais bela criatura existente sobre a terra, mas era bela. Creio beleza seja algo relativo e por minhas mãos passaram algumas incontáveis variáveis dela. Eu poderia descrevê-la em minuciosos detalhes, cheio de aforismas e poesia barata, mas não farei. Para dar contorno à sua imaginação, direi que seus seios cabiam em minhas mãos, possuía um sinal amarronzado no ombro esquerdo, os cabelos encaracolados, uma boca pequena, cujos lábios sempre estavam com pequenas rasuras devido ao hábito de mordê-los com frequência.
Morder os lábios era um ritual para essa moça tal qual tirar a cera do ouvido era para mim. Ela chegava e abri a porta, estava eu sentado em frente minha escrivaninha como de costume com um estúpido palheiro pendendo da boca e um copo suado de gelo, cheio de vodka e alguma mistura aleatória. Eu sorria, um sorriso falso de contentamento, há tempos a companhia frequente de pessoas me irritava. Mas de certa forma ela amava-me e ignorava todos meus defeitos misantrópicos.

BRANCA DE SÊMEN E OS SETE DEPRAVADOS


I - O Nome

Branca de Neve, assim costumavam chamá-la os homens barbudos das docas quando queriam mesclar às suas conversas simples sobre as intempéries marinhas alguma ironia fina subentendida pelos nativos, mas arcana aos forasteiros. Branca de Sêmen, assim a ela se referiam quando as brincadeiras na casa de prazeres lascivos, Once upon a Time, surgiam fundidas aos vapores alcoólicos entremeados ao bafo pesado de peixes recém-pescados – ou às vezes nem tão recentemente mortos assim.

– Ouvi falar que nunca tomou um banho em toda a vida.

– Então deve ser parente sua!

E todos riam: dentes amarelos e arregaçados cuspiam para o ar inerte suas imundícies ébrias, pedaços de carne de veado mau passado e pão preto mofado comido com queijo vieux boulogne de baixa qualidade, servido com um vinho ainda pior, feito no outro extremo oposto do país, varavam também os ares; não sem que os marinheiros exibissem com gestos maquináticos aquela ou esta posição que melhor lhes apetecia quando em companhia de Branca de Sêmen.

Não se poderia imaginar, e creio não estar sozinha nessa conjectura, que o pai de Branca fosse capaz de dar a ela tamanha graça, pensou ele em algo um tanto quanto oposto, ou no mínimo mais romântico: Rosa Vermelha. Desejava, tal sua esposa, uma “criança que tivesse os lábios rubros como o sangue, encarnados e majestosos, desejosos e puros”. Como imaginar que os deuses iriam entender que o vermelho encarnado e bem conhecido pelos marinheiros – diga-se de passagem, e sem maiores pretensões – iria manifestar-se naqueles outros lábios mais abaixo, aqueles tépidos e suaves, desejosos, gulosos e até – não demorou a perceber que podia – treinados pelas artes do oriente. E como conceber que a pureza manifestar-se-ia por meio dos ensinamentos de Vatsyayana, mas deixando de lado o Dharma para se concentrar no Kama (a especialidade em extrair o gozo da relação dos sentidos com os objetos)?

O primeiro objeto não poderia ser mais simplório e comum, algo que, a muitas mulheres, servem-nas de primeiro amante: um sofá. Quando ainda criança, Rosa sentava-se com suas perninhas abertas sobre o braço do sofá no escritório do pai, onde ele costumava atender outros homens de negócio, tal qual ele, sempre ávidos em maximizar seus ganhos naquela cidade portuária e outros entrepostos assemelhados, quer ficassem na terra ou no ar. Sentava-se ela, ou melhor, cavalgava o sofá com as perninhas abertas, brincando de amazona, fingindo perseguir homens indefesos que apareciam na sua ilha selvagem e esquecida, tomada por lindas fêmeas primitivas, porém requintadas nas artes guerreiras e completamente independentes de qualquer influência estrangeira. Enquanto perseguia um incauto que ali havia aportado, foi saltando, saltando, e algo foi saindo e saindo, sentiu uma umidade gostosa e estranha, tépida, morninha mesmo, bem boa de gozar, e de tanto cavalgar, acabou por gozar mesmo, um gozo inocente, de anjo, um gostar ingênuo de criança levada; repetiu e repetiu, então percebeu que repetir é o que era bom, precisava variar não, o simples resolvia: era só cavalgar e cavalgar.

E cavalgando, Rosa Vermelha cresceu molhada, encharcada:

- Nossa! Essa menina anda com a roupa sempre ensopada! - reclamava a serva.

- É que eu gosto de brincar de correr! - dizia Rosa.

HOMOFONIA PULSANTE DE DOIS CORPOS CONSONANTES




Muitas vezes precisava fechar a janela do quarto para que os vizinhos não a vissem nua. A rua iluminada pela luz da lua, não havia ninguém que pudesse vê-los agora. Perdidos em meio a fumaça do ambiente, afogados em meio a suas próprias fantasias. Observou seus olhos bem de perto, pode ver claramente o desejo incendiando as paredes, quando a boca dele chega perto da buceta dela e sua língua desliza lentamente, sempre disse a ela que poderia ser atriz pornô, que havia nascido para isso, poderia trabalhar com sexo, seu lindo corpo branco em contraste com o corpo magro e moreno, a pele dele com tatuagens pretas e com letras lindas que contrastavam com a delicadeza das tatuagens coloridas dela. Ele permanece minutos longos chupando-a enquanto anoitece, enquanto a bebida faz com estejam sinceramente alegres e exageradamente felizes. Tudo oscilava de um lado ao outro numa atmosfera de melodia pesada. As paredes dissonantes, eles envoltos em uma quantidade de tempo previamente calculada. As mesmas músicas de sempre. Quase não fugimos do rap nacional. O gás do isqueiro dela terminou, não havia como terminar a ponta, não havia como acender um cigarro. Ninguém estava preocupado conosco naquele momento, estávamos livres daqueles velhos julgamentos, não se importavam com o que os outros falavam deles.