EDITORIAL - VIGÉSIMA NONA EDIÇÃO

No fim das contas, falar de sexo é quase sempre falar da relação vida-e-morte. Seja morrer em si mesmo numa loucura masturbatória. Morrer no outro, na extensão do outro, no corpo do outro. Morrer na auto-incompreensão, sufocando seu eu no seu desejo carnal por outro ser que nem sabe de sua existência. Seja o orgulho, o amor próprio. O amor idealizado, cujo materialização findará em desespero, ou ainda, a emoção correspondida na mente e no corpo... Sempre será uma vida indo em direção à morte.
Sem mais delongas e sem ressaltar as escatologias da HOT, que sempre andam por aí, seguimos com uma tentativa de um poema Dadaísta. Um poema composto por frases dos três escritos hotfritolianos desta edição.

Poema-hot-dada

gozarmos prazeres.
belo liquido.
indiferentes ao homem pálido
Aquilo que hoje me esquenta.
sugando e expelindo todas as sensações possíveis.
Para poder negar até a mim.
sangue de ambos, sentia repúdio.
ainda gotejando sua vida.
a  chama do coração para a primavera.
Possuído pela melodia estranha.
Não ria, nem nada.
Preciso de um corpo .
Sinto seu fedor.

MEU FRENESI LESMÁTICO


Parecia que estava escuro. Devia estar escurecendo. Uma morbidez de mim tomava conta. A tela do computador também se escurecia. Findava seu brilho. Ainda conseguia enxergar a imagem. Mas era um brilho fosco. Único foco de luz. Alguma música tocavaFazia-se empolgadamente mórbida. Eu não sentia medo. Sentia-me terrivelmente bem. Na tela, a imagem de uma obra, Van Gogh era o dono dos traços admirados. Os três quadros da série "Quarto em Arles". Sem explicação, passava-as repetidamente. A penumbra caía. Dentro de mim uma insatisfação brotava. Ao mesmo tempo, uma euforia tomava conta de meu ser. Não ria, nem nada. Mas sabia que algo estava acontecendo.
Possuído pela melodia estranha, envolvido pelo fumaça do palheiro que findava, pus-me a rir. Uma risada que saiu sufocada, relutante. Mas explodiu em uma longa gargalhada que me sufocava. As imagens já eram disformes. 

A melodia retumbava em ouvidos. Não sei da onde vinha, mas um tic-tac rápido ecoava na minha mente. Sentia uma força nefasta dominando-me. Os arrepios em meu corpo ora me transportavam para uma felicidade, um descampado calmo , sereno. Ora jogavam-me numa confusa guerra, pedaços de corpos voando. Vermelho singrando meus olhos. Gritos de desespero. Em ambos lugares, sentia-me completo. Pleno de vida e pronto para a morte.

ANTIARETÉ


Preciso de um corpo 
Corpo que respire 
Corpo que ame  
Corpo que transpire  
Que me faça escrever poemas  
Juntos gozarmos prazeres  
Que me ame como eu sou  
E me encante com seus poderes  
Em verdade preciso de você  
De sua alma junto a minha  
De sua carne junto a minha  
E de seu sangue...

O SENTIDO DE UM HOMEM (PARTE II - FIM)


- Abre a porta! Eu sei que tá em casa! Sinto seu fedor! Já são dez dias de atraso, seu merda! Se não pagar até o fim da semana, chamo o despejo! 

As batidas diárias do velho usurário nem o incomodavam mais, ficar ali prostrado sobre o colchão amarelado, dúzias de pacotes de chocolate, salgadinhos, comida congelada, latas de refrigerante e outros itens de dieta de mercado de conveniência era o suficiente para John. As explicações para o erro dele já bem conhecemos, no entanto, ele, o maior interessado, não pode nem por mim nem por você ser ajudado, acha que para si está fazendo os maiores dos favores deixando-se perder seus dias em desespero desmedido em vez de reagir, mas que fazer? Estava em choque desde o acontecido, só teve forças para comprar o máximo de guloseimas que pôde com o resto de dinheiro da saída do trabalho e cair naquela cama para se tornar um monstro devorador de lixo. Nem ao banheiro ia mais, defecou nas calças até onde pôde, quando não mais cabiam fezes nela, abaixou-a o suficiente para deixar o bolo fecal escorrer livre do reto para a borda da cama, agora com um rastro marrom que servia de guia para a merda que se acumulava em punhados cada vez maiores no solo. A urina vez ou outra escapava-lhe amarelada e mal cheirosa da uretra, moscas paridas de cadáveres acumulavam-se em derredor das poças formadas em partes diferentes do quarto – a única diversão de John era manipular seu pênis para lá e para cá nas vezes em que se dava conta que estava mixando. Flutuando em bandos cada vez mais numerosos, as moscas disputavam com as baratas os restos dos hambúrgueres rejeitados por John. O fedor já se podia sentir vez ou outra nos apartamentos vizinhos, sobretudo quando John resolvia mover-se para dar um descanso para um dos lados do corpo, o odor estagnado, em resposta, então parecia mover-se para fora do apartamento para buscar um local com menor pressão de gazes, que se tornavam mais compactados pelos flatos ruidosos que ele liberava com vigor minutos após comer mais uma rodada de salgados, doces, refrigerantes e hambúrgueres acebolados. 

Numa manhã, sem qualquer motivo, John decidiu ligar a televisão, com um grande esforço que lhe rendeu uma fuga inesperada de gazes, alcançou o controle e ligou o aparelho. Passava um telejornal em que o apresentador, com uma expressão forçada de dor, dava a notícia da vítima da vez do trânsito enquanto cenas do local do acidente eram exibidas até culminar em duas ou três fotos sorridentes da falecida: 

- Morreu, hoje, atropelada na rua ***, a jovem Ester de Matos Freitas, vinte e dois anos. Ela trabalhava como secretária e estudava Biologia na UF**. O motorista fugiu sem prestar socorro, a vítima chegou a ser socorrida, mas morreu no hospital. Familiares irão velá-la hoje a tarde no cemitério ***. Uma pena! Uma pena! Até quando os jovens do nosso Brasil vão continuar morrendo nas estradas, Elizete? 

- É um problema grave, Osmar. Mas a gente sabe... 

As análises da pan-especilista televisiva, o assentimento dos âncoras e suas repetitivas explicações decoradas sobre casos parecidos não interessavam a John. Há dias que ele não se levantava da cama, mas a notícia fê-lo, com esforço, sentar-se na beira contaminada de fezes, sem nem mesmo perceber, mergulhou os pés no monte de esterco acumulado, mas em vez de chorar, sorriu, e o sorriso expandiu-se numa risada larga que virou uma gargalhada descontrolada. As lágrimas agora eram de uma alegria sincera, riu-se até literalmente cair, rolou no chão sobre a merda e o mijo, espalhando-os sobre as poucas partes ainda não contaminadas do quarto. Com a mandíbula dolorida, continuou a rir-se mais e mais, ignorando completamente o velho que à hora do almoço, religiosamente, ia bater na porta: 

- O aluguel, seu bosta! Sinto seu fedor! Agora ri da minha cara é? Vai ter despejo, Jon! Despejo! 

- É John, seu valho gaga! E vai pro inferno com o seu despejo! 

Respondia o outro após dias e em meio a risadas convulsivas. 

 tá fudio, moleque!  tá fodido! 

O riso cessou de pronto. John pôde mesmo escultar os passos vigorosos do velho descendo a escada. Era o momento de fazer algo, não poderia mais ficar ali jogado em meio ao lixo parido dele mesmo. Deveria, finalmente, agir como deveria ter agido desde o início da sua vida: com temeridade para conseguir seus objetivos, sem pensar nas consequências. E aquele episódio, aquela morte, agora sabia o nome dela, a morte de Ester, seria o evento marco da mudança indelével da sua vida.  Contudo, precisaria vê-la uma última vez, vê-la sendo enterrada seria o evento simbólico para o reinício, com ela iria todas as falhas, uma vida miserável, os desejos insanos, a terra sobre o caixão de Ester seria a terra sobre uma vida morta. Encontrou, após algum esforço, uma muda de roupa um pouco limpa, pelo na medida para não ser confundido com um mendigo. Tomou um longo banho de não menos que uma hora, arrumou-se como deu com restos de perfume, desodorante e gel. Antes de sair, espiou pela janela para ter certeza que o velho não estaria de tocaia na saída do prédio e desceu as escadas com certo vagar que não era muito condizendo com o medo inicial de ser cobrado, mas que se mesclava perfeitamente com a estranha leveza de espírito de John. Aquele reinicio haveria de ser mais que um mero assistir de caixão sendo engolido por terra.